piano...

Nos últimos tempos tenho vivido intensamente. Sentido com todos os sentidos mais apurados, de volta à essência do sentido.
Falo e abro muito os olhos como se com isso conseguisse ver mais, melhor, do que o que vejo e a dor de apenas ver a realidade aguça a minha inconstância que embrumo por detrás de sorrisos gastos e de palavras sentidas apenas para os outros.
é por isso que me escondo.
deixo o piano tocar baixinho onde só os meus cílios o sentem e esqueço os sons garridos com que costumo enebriar-me, faço por não ouvir as vozes melodiosas e apenas ouço... piano.

o som dos dedos sobre as teclas, aquele som que se percebe entre os sons que as cordas fazem ecoar, aquele que, quem já tocou num piano, sabe qual é. aquele que faz do piano um instrumento agudizante da minha impaciência-de-alma, da minha falta-de-paz-de-espírito.
é aquele som, breve, seco que antecede cada uma das notas em que me revejo.
se eu fosse um piano, eu seria aquele som. que quase ninguem ouve, que não é parte principal da música mas que é, para mim, parte da melodia.

«A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos.»
(Ludwig Beethoven)

ao Neco

Há sempre uma parte de nós que quer desistir.
Há sempre, dentro de nós, uma outra pessoa que não compreende como aguentas e outras tantas, fora de ti, que não vêem a verdadeira força que te faz andar. Menosprezam a tua capacidade de por um pé na frente do outro e arrastares essa tua existência acreditando que persegues uma luz que, racionalizando, não podes nunca ter a certeza de que existe...

Há momentos em que só consigo pensar em desistir e auto-penalizo-me por sequer o pensar.
Sou tão abençoada e no entanto permito-me achar não o ser. Vejo-o como pecado. Um verdadeiro pecado achar que mereço mais do que tenho quando o que me retiram é tão pouco considerando o que outros, tantos, não têem.
Não me sinto humana pois não me consigo rever no comportamento de muitos e considero até por vezes estar errada quando sinto.
Sinto. Às vezes demais (dentro da minha capacidade) e a vontade de verbalizar que ‘desisto’, ‘estou farta’ ‘não aguento mais’ rompe dentro de cada lágrima gorda que não salta porque dentro de mim está sempre presente a condicionante de que o que sofro não é nada, não vale nada quando comparado com o que fazemos sofrer, com o que vemos agonizar e muitas vezes (tantas... demais...) quem padece é apenas esponja da maldade que existe.

É-me totalmente impossivel conceber que o Mundo tenha sido criado para que o Bem e o Mal coexistam sempre em iguais quantidades e, ainda mais impossivel de aceitar que o Mal bafeje quem nada fez para o merecer...
‘Karma...’ a palavra em si doi-me e é-me insuportavel.
Quantos de nós sofremos o mal dos outros quando a esses o mal nada diz?
Porque somos nós que o sofremos? Existe a justiça-Universal?
Existe algum motivo pelo qual alguns sofrem e choram a dor dos outros quando outros, tantos, imensos, nada sentem?
Será possível sentir-se menos?
Sempre pensei que quando crescesse iria formar uma carapaça que me permitisse, tal como os outros, olhar a dor e não a sentir como minha.
Lamento o meu dom que sinto como défice. Porque a mim doi-me.
Há dias em que sinto que a minha capacidade de sofrer o peso dos outros (aqueles que nada fizeram para o merecer) serve apenas para me separar ainda mais dos meus iguais, os humanos.
Momentos, espaços de tempo imensos em que só não me sinto sozinha pois sei que existem outros como eu. Outros que, tal como eu, estão condicionados a viver esta vida, sofrer o deles e dos outros e sofrer ainda mais quando se vêem acomodados à inércia dos outros.
Diz-se que quem parte é feliz.
Quero acreditar. Quero continuar a acreditar. Esforço-me e quero continuar a esforçar-me para que o consiga. Mesmo quando as pedras debaixo dos meus pés descalços e já feridos, escaldam, queimam, incineram a minha alma.
Mesmo quando abandono a minha espécie e deixo de ser humana para ser apenas aquilo que sou. Um ser vivo com o dom de sentir sem filtros, mesmo quando o que sinto é apenas ausência e quando dentro de mim grita apenas ‘desisto’, ‘estou farta’ ‘não aguento mais’.

1-julho-2010
«A ignorância é o abismo da fé, porque a fé é um acto da inteligência»
(Camilo Castelo Branco)