a amiga-bonita

«Preciso de me distrair... Vamos sair!»
Ela aceita, sabendo que mais uma vez vai remeter-se ao papel da amiga-feia...
Ela sempre se achou feia... e demasiado complicada e desinteressante para os homens...
Lá vai ela, sem nunca se maquilhar ou arranjar até porque, sabe bem, o seu papel é o da amiga-feia...
Talvez por isso, por se achar a menos que as outras, nunca tenha tido muitos namorados... ou porque de facto é feia e, ao contrário do que lhe dizem algumas pessoas «bem mais gira que a tua amiga»...
Dizem-lhe isso por verem-na cada vez mais velha, sozinha, descrente dos outros e crente de que a vida dela não passará disso...

Chegam ao restaurante... Dezenas de cabeças masculinas viram-se para olhar a amiga, que traz os seus longos cabelos apanhados num rabo-de-cavalo que dá a volta a si prório, que ela conseguiu utilizando um daqueles apetrechos que se vendiam no Televandas...
Ela, de cabelo curto, mal arranjado ao estilo do seu cabelo palha-de-aço que nem com quilos de ceras e outros que-tais estilizantes ficaria no sítio certo, sente-se mais uma vez a amiga-feia que faz de acessório à amiga que já foi galada por pelo menos 10 homens diferentes.
Não é que ela queira ser galada... que não quer... queria ser admirada pela sua inteligência mas esqueceu-se que o Mundo gosta mais das aparências bonitas do que de um sentido de responsabilidade e ética... Ao mesmo tempo esqueceu-se de meter perfume...! Sente-se ainda pior... mais feia, menos adequada ao mundo real onde a amiga tenta fazer mais uns torcicolos...

Espanta-se com a facilidade com que os homens viram a cabeça perante um decote ou um riso vermelho-sangue que tem tudo de falso e nada de real... Espanta-se porque a amiga, muito certa das 9 às 18h, transforma-se naquela manequim de loja de rua, de saltos altos e essência de baunilha, a fumar o seu cigarro enquanto bafa o fumo espesso pelo frio cortante da noite, para cima de um pobre coitado que se vira, entusiasmado por ter tido a sorte de levar com monóxido de carbono nas ventas...

Deixou de fumar... mais valia deixar de beber também e nunca sair de casa... Ficar presa no seu Mundo do qual ninguém sai, provavelmente porque também ninguém entra...
São 23h... pagam a conta e saem do restaurante... «Vamos dançar! Estou cheia de energia...!»

Segue-a pelas ruas onde já anda meia trôpega... Bebeu demais porque queria sentir-se bonita... só se sente bêbeda e ainda menos adequada à azáfama-bonita da noite-dançarina de onde saem 1000 mulheres, todas mais lindas que ela, mais arranjadas, mais bocas de vermelho-vivo... Ela só se preocupa com os seus lábios de vinho e no quão pouco atraente isso será...
Imagina-se a ser vista pelos potenciais candidatos e em todos vê e ouve as críticas que lhe tecem... Demasiado baixa, demasiado estranha, demasiado gorda, demasiado magra... Tem os dentes tortos e escuros e nem usa batôm... Fala de coisas que não interessam e quando se ri fá-lo de maneira pouco feminina... Revê-se em todos os defeitos que não lhe são ditos e conforma-se em ser a amiga-feia, candelabro da amiga-bonita...

«Estás a ouvir?... Diz lá se ele não está a olhar para mim..? Vamos passar lá perto a ver se ele é dos que têm coragem ou se tenho que ser eu a dar a dica...»
Arrasta-se atrás da amiga, esperando que pensem que aquele perfume doce emana-se dela... Sabe bem que nem que se borrase em chantily via a oferta aumentada...

Sente dicotomias... por um lado não queria ser a amiga... o trabalho que ela tem!! por outro queria atenção... diz-lhe o psicólogo que a segue há uns quantos anos que ela tem problemas de rejeição e que por isso sente falta de atenção de terceiros...

Mas não é verdade. Dentro dela, não é verdade... O que ela quer é apaixonar-se... Já nem sabe o que isso será... Em tempos disseram-lhe que tinha que sair, conhecer pessoas e logo-logo conheceria alguém que lhe enchesse as medidas...
Por isso quando a amiga lhe diz «Preciso de me distrair... Vamos sair!» ela aceita, sabendo que mais uma vez vai remeter-se ao papel da amiga-feia...

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