microfracturas

é normal sentir-mo-nos sozinhos... mesmo no meio da multidão... especialmente no meio da multidão...
no fundo estamos...
sentimos o ar passar por nós, carregado do cheiro morno e húmidos dos outros corpos, o sebo que emana e se entranha nas nossas narinas, enquanto nos sentimos sozinhos...

perdi tanta coisa e o que ganhei não traz consigo o calor que pensei ser capaz de reter...
culpo-os a todos e culpo-me a mim... especialmente culpo-me a mim e ao tempo que deixei passar e deixo cair entre os dias, horas, minutos e segundos que perco... tenho a noção de que os deixei voar e que, ao contrário das andorinhas, não voltarão nunca mais...
perdi-me, perdi-te e enquanto aldrabava que teria sido por escolha minha, mostro a todos os dentes podres de quem ri por esgar e esgana de raiva comedida e acometida entre mil sonhos quebrados, pisados, emporcados por aquilo que é a vida...

é normal sentir-mo-nos sozinhos... eu é que nunca pensei que me acontecesse a mim... porque eu sempre fui especial... eu sempre entendi e vi à frente... nunca me surpreendo e sempre estou atenta, nada me destrói nem corrói... (mais mentiras que contas a ti própria)...

fomos andando e fomos deixando o pó da inércia e da infelicidade cair em nós e sobrepondo-se em camadas tão espessas que já nem nos vemos... arrastamos este manto de nada pejado de pó grosso, húmido e mal cheiroso em que nos transformamos... aos olhos dos outros fazemos tanto... e aos nossos, os mais invejosos e enrraivecidos olhos do Universo, apenas sentimos um enorme pesar... carregamos as microfracturas dos nossos ossos como se fossem medalhas de honra por aquilo que passámos já mas no fundo... no fundo nada mais são que zonas de fragilidade que o mínimo movimento leva a dor lancinante e trejeitos de puro terror pelo passado que não esqueçemos e pelo futuro que achamos nunca vir a ser melhor... sabemos o tempo para amanhã... sabemos quando chove, quando faz sol, quando aumenta a pressão e a tudo isto juntamos um sorriso de vida com o qual encobrimos a verdade de que não somos felizes... dia nenhum...

perdi-me sempre que tentei chegar a lado algum e sempre que olho para trás culpo-os a todos e culpo-me a mim... 

31 Maio 2017
«A saudade não está na distância das coisas, mas numa súbita fractura de nós, num quebrar de alma em que todas as coisas se afundam.»
Vergílio Ferreira

se existe... está sujo.

Vamos mudar tudo.
E vamos começar pelo estilo de letra...
[é mais fácil começar por alguma coisa que não depende de nós e, mais a mais, diferença nenhuma fará!]

Vamos despir a pele que fomos acumulando ao longo dos anos e ficar nús.

Despelados e desnorteados, como sempre fomos como quando não estavamos a fazer de conta.
Era bom.
Conseguir fazer a verdadeira mudança de tudo o que achamos mal, da mesma maneira que conseguimos limpar aquele pó acumulado nos globos de neve que, tal como a pele, acumulámos e deixamos ir acumulando...
Mas na superfície... Ácaros... milhares de milhões de ácaros e outros «gajos» de nomes estranhos que aspiramos (com aspirador e pelo nariz) a toda a hora... são Aspergillus, Penicillium, Alternaria e Fusarium... verdade... a toda a hora... por mais que sejamos obcecados por limpezas...! Nunca nada está limpo... se existe... está sujo... mesmo depois de ter saído de lavar...
Digo-te com toda a certeza: depois de ter sido emporcalhado... não há Neoblanc nenhuma que salve...
Tentamos todos, de diversas maneiras, fazer sair aquela mancha que aconteceu quando achávamos que tudo tem solução mas hoje, ao olharmos, sabemos, no íntimo sabemos perfeitamente, que nunca sairá e o nosso sentimento por aquele item lindo-adquirido-por-amor-e-paixão-daqueles-que-nunca-vão-diminuir, está porco, manchado e nunca, nunca, nunca voltará a fazer-nos sentir como daquela primeira vez (em que até fizemos que não estávamos a ver aquele ponto desfiado e pensámos «puxa-se para dentro, ninguém vê»)...

mas tu. tu já viste. sabes que lá está... e o sentimento nunca mais é o mesmo.


19-Fevereiro-2017

«A verdade é como o Sol. Ela permite-nos ver tudo, mas não deixa que a olhemos.»
Victor Hugo